A reconciliação com o filho e a morte do pai de John Lennon

Já se passara 17 anos desde aquele dia de verão em Blackpool em que Alf Lennon vira seu pequeno filho partir nos braços da mãe. Seu plano de raptar o filho e dá-lo alguma segurança familiar fora por água abaixo, e o único consolo era o mar, viajando de porto em porto, sem direção para casa. Agora, com mais de 50 anos, Alf estava trabalhando como lavador de pratos no pub The Grasshopper. Exatamente nessa época, um grupo de jovens músicos de Liverpool liderado por um rapaz com traços específicos e nome familiar começava a ganhar espaço na imprensa internacional. Era impossível para alguém que residisse na Inglaterra nunca ter visto ou ouvido falar daquele espirituoso John Lennon, inclusive Alf. Logo ele desconfiou que era mesmo seu pequeno filho, mas achou que procurá-lo logo agora o estigmatizaria como um aproveitador. Ele se esforçou ao máximo para se manter anônimo, mas uma curiosa coincidência mudou tudo. Alf fora a Londres em busca de emprego e tomava café próximo ao Teatro Scala, onde os Beatles gravavam cenas do filme A Hard Day’s Night. Ouvindo e observando a euforia dos fãs no lado de fora do teatro, Alf decidiu que contaria a verdade através da imprensa.

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Depois de muita negociação com John o encontro foi concretizado. John não demonstrou nenhuma reação ao vê-lo, perguntando friamente o que é que Alf queria. O pai disse que não desejava dinheiro ou nenhuma vantagem por conta do sucesso dos Beatles: queria apenas ter a chance de se explicar e dar a sua versão sobre o suposto abandono. E foi o que fez, contando das traições de Julia e de suas tentativas de salvar a família. Com isso, pai e filho conseguiram compartilhar algumas histórias e lembranças de Liverpool e até alguns poucos sorrisos. Porém, depois de 20 minutos, Alf partiu, não imaginando que só veria o filho de novo anos mais tarde. “Eu o vi, falei com ele”, lembrou John. “E decidi que ainda não o queria conhecer”.

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Em 1967, inesperadamente, a relação entre John e Alf tomou outro rumo.  Brian Epstein, o empresário que dava uma segurança paterna aos Beatles, fora encontrado morto, deixando a banda atordoada e sem rumo. Essa tragédia trouxe uma sensação de efemeridade à vida de John. De repente, ele se deu conta que a vida era muito breve para guardar rancor. Ao mesmo tempo, Charlie Lennon, o irmão mais novo de Alf, que havia testemunhado as desventuras e traições de Julia, se revoltou com as notícias de que o irmão havia abandonado a esposa e o filho. A gota d’água para Charlie, porém, foi ler sobre a visita do irmão a Kenwood, casa de John, que acabara com o beatle batendo a porta na cara do pai. Charlie, então, sentou-se e começou a contar em uma carta todas as verdades escondidas de John. Contou que Alf viajava a trabalho, para garantir o sustento da família, das duas traições de Julia e da filha que Julia tivera fora do casamento. De alguma forma, a carta chegou às mãos de John, que fora questionar tia Mimi sobre a veracidade dos fatos. Sem ter como sustentar a mentira, ela admitira tudo. Já com John com o coração na mão, chegara a Kenwood uma curta e sincera carta de condolências de Alf pela morte de Brian. Sentindo a sinceridade do pai, John escreveu-lhe uma carta constrangida que começava com “Querido Alf Fred Papai Pater o que for…”. No verso do envelope, a assinatura: “Adivinhe quem”.

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Aproximadamente um mês depois de receber a carta de John, Alf recebeu instruções por escrito do escritório de Brian Epstein para estar em frente da agência de correio em Kingston-on-Thames, a uma determinada data e hora. Ansioso para o encontro, Alf chegou ao local na hora marcada e foi apanhado por Les Anthony, chofer de John, que lhe deu um envelope recheado de dinheiro, o acomodou no banco traseiro do Rolls Royce psicodélico e o levou até Kenwood. Quando chegou à casa dos Lennon, ele encontrou apenas Cynthia e Julian, seu neto. Eles tomaram chá e conversaram até John voltar das gravações, tarde da noite, mas logo se vira que a atitude de John em relação ao pai havia mudado completamente. Eles se abraçaram como nunca e John conseguiu chamá-lo de papai, dizendo que deveriam esquecer do passado. De repente, John surpreendeu a todos dizendo que seu pai deveria se aproximar da família morando com ele a partir daquele dia. Alf foi avisado pelo filho que passaria aquela noite no quarto de hóspedes e no dia seguinte mandaria buscar suas coisas.

Freddie Lennon

Com isso, Alf mudou-se para Kenwood, ocupando o antigo apartamento dos empregados no alto da casa, onde John e Cynthia acamparam provisoriamente durante a reforma da casa. Se pensara que a mudança o aproximaria do filho, Alf estava muito enganado. Raramente ele e John se encontravam e, com Julian na escola e Cynthia alimentando sua vida social, Alf começou a sentir-se cada vez mais sozinho. Sem saber dirigir, ele mal podia sair de casa. Um dia, quando tentou caminhar até um pub, perdeu-se nas propriedades vizinhas. A situação de Alf manteu-se assim até uma visita que Lilian Powell, mãe de Cynthia, fizera a Kenwood. Vendo o pai de John zanzando pela casa desconsoladamente, ela disse que ele deveria pedir ao filho um lugar que pudesse ter alguma independência, e não ficar trancado em Kenwood “como uma galinha num viveiro”. John entendeu a situação e Alf ganhou um apartamento no bairro de Kew, mais um aparelho de televisão, lençóis e cobertores e dez libras por semana (que era o salário semanal que ganhava lavando pratos). Depois de instalado na nova residência, Alf soube por terceiros que o filho ficara perturbado com sua partida.

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Surpreendentemente, a revelação de que Alf, com 54 anos, tinha uma namorada de 19 anos, não chocou John Lennon como chocara outras pessoas. Curioso com a namorada do pai, John convidou Pauline Jones para passar um fim de semana em Kenwood. O que era para ser apenas dois dias acabou prolongando-se. Ao ver a serenidade adulta da jovem Pauline, Cynthia convidou-a a trabalhar como babá de Julian, ajudando a atender telefonemas e organizar as pilhas de cartas de fãs. Assim, enquanto Alf desfrutava de seu novo lar, em Kew, Pauline se instalava no quarto dos empregados, em Kenwood. Em 1968, Pauline engravidou de Alf. Para manter o caso em segredo, ele providenciou nova residência para o pai e Pauline em um endereço desconhecido. Apesar disso, o sossego não aconteceu e Pauline sofreu um aborto. Pouco tempo depois, ela engravidou de novo. Alf e Pauline estavam proibidos, pela justiça, de se casarem. Com o apoio de John, o casal decidiu fugir para a Escócia. O filho foi generoso, pagando toda a despesa da viagem e depois colocando um apartamento no nome de Alf. Por fim, John enviou um simpático bilhete desejando-lhes boa sorte. 

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John ficou mais de um ano sem ter noticias de Alf, que acabara de se tornar pai pela segunda vez, aos 57 anos. Alf tivera a ideia de escrever uma autobiografia e queria a aprovação de John. Como resposta, John convidou a família do pai para conhecer sua nova casa de Tittenhurst Park. O encontro foi constrangedor e logo depois Alf foi intimado a repassar sua casa para o nome de John. Pauline tornou-se a única fonte de renda da família. Pouco depois John aliviou para Alf, dando ao pai 500 libras em troca da devolução da casa para John e da proibição de entrevistas à imprensa. De um jeito pouco amigável, Alf e John nunca mais se encontrariam.

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Em 1973, Pauline deu à luz outro filho, Robin. Depois do último encontro em Tittenhurst Park, em 1970, John não havia mais entrado em contato com o pai, e não sabia que havia ganhado outro meio-irmão. Em 1974, um advogado britânico notificou Alf que John queria restabelecer contato. Porém, com medo de provocar de novo o filho famoso, ele não respondeu. Por mais triste que fosse a distância entre pai e filho, Alf nunca desistiu de convencer John de que não o havia abandonado naquele dia de verão de 1946, em Blackpool. Com esse desejo à flor da pele, em 1975, Alf sentou-se para terminar a autobiografia que recebera ordem de abortar cinco anos antes. Num estilo descontraído e bastante legível, marcado por fragmentos de sua formação no Bluecoat, ele descreveu sua criação humilde pelos Lennon, que John mal tivera contato, sua partida para o mar e todas suas decisões. Mesmo sem menosprezar Julia, mãe de John – na verdade, muito pelo contrário, Alf falou dela com amor e respeito – ele relatou os fatos que aconteceram desde que se casaram: as traições da esposa e a luta de Alf para manter a família, inclusive se dispondo em aceitá-la de volta e adotar o bebê que ela tivera fora do casamento, mas ela recusou.  Resumindo, o pai de John sempre estivera pronto para voltar para casa, embora nunca fosse aceito. Cada capítulo terminava com pós-escritos endereçados diretamente ao filho, nos quais enfatizava como, nos primeiros anos de vida, pelo menos, suas situações tinham sido curiosamente semelhantes.

Capítulo 2

P.S. Caro John… Como você, também não tive pai, mas naturalmente as circunstâncias não foram tão lastimosas como as suas, que o deixaram com um ressentimento e, se posso dizer, estranhamente lhe deram o ímpeto para se superar e chegar à sua posição atual.

Capítulo 3

P.S. Caro John… A primeira vez que ouvi sua gravação de “Penny Lane” meus pensamentos imediatamente se voltaram para o Blue Coat Hospital e, claro, a Newcastle Road. Fiquei me indagando se algum elo do passado guiava a sua pena, sobretudo quando a barbearia do sr. Bioletti foi mencionada, pois ele costumava cortar os cabelos dos meninos do Blue Coat.

Capítulo 8

P.S. Caro John… Talvez a leitura de meu relato descontraído do meu casamento com sua mãe possa comparar-se à descrição do seu primeiro casamento na biografia de Hunter Davies. Pensar que você deu o mergulho matrimonial no mesmo cartório, vinte anos depois, seguindo-me até o outro lado da rua para comer frango na “Big House”. Mas, nós dois, acabamos encontrando a parceira certa. (John estava com Cynthia Powell, na época)

Capítulo 20

P.S. Caro John… Você vai ver que preferi não entrar na insana luta pela vida e estou seguro de que, ainda que não tivesse alcançado sua presente situação notável na vida graças aos seus talentos, você também rejeitaria o emprego convencional das 9 às 5, em desafio ao sistema…

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Três meses depois, Alf recebeu o diagnóstico de câncer terminal de estômago. Quando a notícia chegou a John, o pai já estava internado no Hospital Geral de Brighton. Imediatamente John ligou para Alf e também para o especialista que o tratava. A essa altura, Alf estava tão debilitado que mal podia segurar o fone, mas a breve conversa entre pai e filho o deixou com a impressão de que o seu “Little Pal” daquela fuga para Blackpool em 1946 havia milagrosamente retornado. John deu-lhe o número do apartamento no Dakota, contou-lhe de Sean, seu novo neto, e prometeu um reencontro assim que ele ficasse bom. Alf contou-lhe sobre a autobiografia e fez John prometer que a leria. Ainda deu tempo para conversarem um pouco sobre música, uma paixão de família, e depois se despediram com um brusco e típico “See yer, la” (“Nos vemos, hein?”), dos tempos de Liverpool. No fim do dia, Alf recebeu um enorme buquê de flores. “Para Papai – Fique bem logo”, dizia o cartão. “Com muito amor de John, Yoko e Sean”. 

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Alf entrou em coma e morreu poucos dias depois. Como havia prometido, Pauline enviou uma cópia da autobiografia para Nova York, com a carta de apresentação que Alf havia escrito meses antes:

Caro John,

Quando você ler esta carta eu estarei morto, mas espero que não seja tarde demais para preencher as lacunas no seu conhecimento do seu velho pai que lhe causou tanto pesar ao longo da vida.

Desde que nos encontramos por ocasião do seu 30° aniversário, fui assolado pela imagem de você gritando por seu Papai e é minha sincera esperança que, ao ler este livro, deixe de me querer mal. Talvez as revelações na história da minha vida possam lhe trazer uma visão mais clara de como o destino e as circunstâncias controlam tanto de nossas vidas e devem portanto ser levadas em consideração em nosso julgamento um do outro.

Até nos encontrarmos de novo, algum dia, em algum lugar.

Seu pai,

Freddie Lennon

12 Respostas para “A reconciliação com o filho e a morte do pai de John Lennon

  1. Maravilha de texto. Deu para sentir na pele tanto o que John sentiu como o que Alf sentiu. Espero que tenham mesmo se encontrado.. e que estejam bem. Vontade de saber.

  2. Muito bom… Parabéns!!!
    Linda história!! ;’)

  3. Uma história semelhante a muitas outras. Há outras muito mais trágicas, e ninguém se comove por isso.

  4. Muito comovente a história da vida de John Lennon.Fiquei emocionada.Parabens pelo texto.

  5. com essa experiencia,John Lennonnao cresceu,fez o mesmo ou pior com seu filho Juliann,

  6. Espero que John Lennon nunca mais tenha encontrado seu pai mesmo após a morte!! Só quem passa é que sabe e John sofreu muito por causa do pai!! Que, pelo menos agora, depois de sua morte ele (John) possa descansar em paz.

    • Entendo suas frustrações, anseios maternos, mas por favor, pondere em suas emoções, terá anos longos de vida e, aproveite bem sua vida em fazer amigos e quem sabe ser perdoada se acaso fizestes mal á alguém, abraço !

  7. Muito bem Paula Magalhães, você disse tudo! Adoro John Lennon,mas, ele foi muito pior que Alfred!

  8. Elizeu Santos Eufrasio

    Eu fiquei com o desejo de ler a autobiografia escrita pelo Alfred. Onde posso adquirir?

  9. Ele aprendeu sim ,enquanto repetia o mesmo erro com Julian por ainda ter não perdoado o pai, mudou após entendê-lo, depois foi um verdadeiro pai para Sean e se reconciliou com Julian.

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